JOÃO RAMALHO
Manuel da Nóbrega e José de Anchieta estudaram ambos na Universidade de
Coimbra, escreviam com desenvoltura e sabiam latim. Não teriam levado a
cabo a tarefa de plantar um colégio no alto da serra, porém, não fosse a
colaboração de uma dupla bem mais tosca: o português João Ramalho e o
índio Tibiriçá. Como é que João Ramalho veio dar com os costados no
Brasil é um mistério. Seria um náufrago? Um degredado dos que as naus
lusitanas costumavam largar nas terras recém-descobertas? Calcula-se que
tenha chegado por volta de 1510. Em 1532, ano da vinda de Martim Afonso
de Sousa, comandante da pioneira expedição “colonizadora” enviada pelo
governo de Lisboa, ele já era, serra abaixo, em São Vicente, e serra
acima, no planalto conhecido pelos índios como “Piratininga”, uma
espécie de chefe do pedaço.
João Ramalho vivia entre os índios da região, com quem firmou
parcerias que lhes garantiam vantagens nas guerras e nos negócios. Os
negócios podiam ser de troca com outros grupos de índios mas também — e
daí a importância de um europeu a comandá-los — de comércio de
mercadorias ou de escravos para as expedições que passavam pelo litoral
hoje paulista em direção ao Rio da Prata. Entre os índios aliados de
João Ramalho, destaca-se o cacique Tibiriçá, tido como o principal dos
líderes nativos na região. João Ramalho tomou como esposa, ou pelo menos
como uma das esposas, talvez a principal, uma filha de Tibiriçá,
Bartira. Formou-se então entre eles uma aliança de sangue que, se tem
valor entre outras gentes, entre os índios tem mais ainda. É para toda a
vida, e para o que der e vier.
O prestígio e a autoridade de João Ramalho garantiram uma boa
acolhida a Martim Afonso, em 1532. Tibiriçá ajudou, e tomou-se de tais
amores pelo comandante português, que quando foi batizado, e teve de
optar por um nome cristão, escolheu o de Martim Afonso Tibiriçá. João
Ramalho ainda prestou um favor extra a Martim Afonso: conduziu-o pelas
trilhas que levavam ao alto da serra. A partir daí, os colonizadores
ficaram sabendo que lá em cima se estendiam terras mais povoadas, mais
férteis e mais ricas de promessas do que a estreita faixa litorânea em
que se apertam as ilhas de São Vicente e Santo Amaro.
Foi uma prévia do amparo que, vinte anos depois, se ofereceria a
Nóbrega e Anchieta. A relação dos padres com João Ramalho foi
conflitada. Eles o enxergavam como um bruto que andava nu, tinha várias
mulheres e não respeitava os mandamentos cristãos, conforme se lê em
suas cartas. Mas, ao mesmo tempo, apoiavam-se nele, e sem ele, e sem
Tibiriçá, o projeto em que estavam envolvidos teria viabilidade zero.
Tibiriçá, que se supõe ter sido chefe de uma aldeia estabelecida onde
hoje é o Largo de São Bento, arregimentou os índios que viriam morar
perto e seriam doutrinados pelos jesuítas. Ele e João Ramalho garantiram
a segurança do local contra a investida de eventuais contrários.
Em 1562, deu-se um ataque que por pouco não risca do mapa a
incipiente São Paulo. Segundo detalhado relato de Anchieta, uma
coligação de nativos descontentes investiu sobre o povoado, manteve-o
sob cerco durante dois dias e chegou a avançar sobre o quintal dos
jesuítas. João Ramalho tomou a si a tarefa de comandar a resistência. E
Tibiriçá revelou-se, nela, o mais valoroso dos combatentes. O cacique,
chamado por Anchieta de “fundador e conservador da casa de Piratininga”,
morreu naquele mesmo ano. Seus restos encontram-se na cripta da
Catedral da Sé. João Ramalho morreu em 1580, em avançada idade. É o
fundador da dinastia de mamelucos que, no século seguinte, terá lugar de
destaque na empreitada comercial-militar conhecida como “bandeira”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário